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O olhar transformador

O olhar transformador

Ilustração: Claudia Liz

Lonas de caminhão, pedras, chapas de aço, pedaços de madeira. Elementos que vimos ao lado saltam aos olhos de artistas como que querendo transmitir uma mensagem. A ressignificação do ordinário é parte do processo criativo – não é preciso entender, mas sentir. Por vezes nos desconectamos do que aparentemente faz sentido e damos voz ao nosso silêncio. Nessa coluna, digo que “ouvi” as pinturas de Aécio Sarti e esculturas de Luiz Philippe; acompanhem comigo seus universos apurados.

Foto: Rafael Lima

Aécio Sarti, artista plástico, usa como matéria prima principal para sua arte, lonas de caminhões usadas.

“A minha inspiração vem de pessoas que encontro pelo caminho”.

Natural de Aracajú, formado pelo Colorado Institute of Arts (EUA), Aécio Sarti pinta o belo em suas representações humanas. Seja através de um trabalho rico em detalhes e cores ou de pinceladas soltas, grafitadas, monocromáticas, ele mostra a beleza de seus retratados em uma atmosfera muito particular. Uma atmosfera descomprometida com o olhar do outro, criada por Aécio para dar sentido à sua própria vida.
Seus quadros apresentam histórias, sejam elas vividas, contadas, idealizadas, ou que somente deflagram sua constante busca por novos traços, novas técnicas, novos suportes e novas maneiras de dialogar com o mundo.

Obra: “O céu que me guia” medidas: 215 x 159 cm

Sua carreira começou aos 14 anos de idade vendendo suas obras em praças e feiras da cidade. Com 16 teve suas primeiras aulas de pintura, e no final da década de 70, muda-se para os Estados Unidos e ingressa no Colorado Institute of Arts, em Denver. Lá, realizou suas primeiras exposições.
Na sua volta ao Brasil viu-se obrigado a parar de pintar devido à crise financeira do país, e por vinte anos trabalhou na área de exportação com companhias aéreas deixando totalmente sua arte de lado. Em 2002, largou tudo, mudou-se para Paraty onde mantém um atelier de portas abertas ao público e não parou mais. Já foram mais de 20 exposições entre a América do Sul, Norte e outros continentes.

Obra: “Extensão de si mesma” medidas: 160 x 140 cm

Um dos seus maiores projetos, foi “Céu de querubins” – uma lona com 96 metros quadrados, totalmente retratada com dezenas de querubins – que serviu para proteger a carga de potes de barro comercializada por três caminhoneiros desde o sertão da Bahia, até o sudeste do Brasil. Esse projeto virou um curta-metragem dirigido por Gustavo Massola e produzido por Daniel Sarti, filho de Aécio. O curta já ganhou inúmeros prêmios nacionais e internacionais. Vejam o trailer a seguir (curta metragem completo no site: www.aeciosarti.com)

Trailer do curta metragem “Céu de querubins”

NL – Aécio, você poderia explicar o “por que” da escolha desse material na sua arte?
AS – Eu sempre busquei uma boa textura para pintar. Acho que ao longo da carreira os pintores sempre procuram novos suportes interessantes para trabalhar. Quando comprei a primeira lona me dei conta que, além da textura, da cor e de toda sua beleza, eu também tinha em mãos um objeto impregnado de histórias vividas nas estradas. Cada pedaço, cada remendo, cada marca me conta algo. A lona tem uma energia diferente. Toda lona que uso me traz uma nova história, uma nova possibilidade.

Obra: “Transparência” medidas 150 x 150 cm

NL – Seu atelier em Paraty é aberto ao público. Ao mesmo tempo em que você trabalha, recebe as pessoas. De que maneira essa interação reflete na sua arte?
AS – Cada artista tem sua maneira de trabalhar ou acabada desenvolvendo uma dinâmica própria por alguma necessidade específica. Talvez a maioria prefira o isolamento no momento da produção. Pra mim, trabalhar de portas abertas é algo natural. Na vida pessoal sou bastante recolhido, então, ter as portas do atelier abertas é uma maneira de me renovar e de me inserir no mundo. Posso dizer que o mundo passa pelo meu atelier. Muito do que as pessoas me trazem no dia a dia acaba influenciando minha produção, desde a cor da roupa que o visitante usa até as histórias que ele conta. Um espaço aberto também democratiza a arte. Todos, sem distinção, podem entrar e me ver pintar. Presenciei diversas situações em que a arte tocou profundamente alguém. Talvez isso não tivesse acontecido na vida dessas pessoas se não tivessem encontrado um espaço onde se sentissem à vontade para apreciar e falar sobre arte da maneira que quisessem, sem aquela velha insegurança de ter que “entender” de arte para interagir com ela.

NL – O projeto “Céu de querubins”, essa imensa lona de 96 metros quadrados retratando dezenas de querubins, percorreu muitos quilômetros pelo Brasil protegendo uma carga de potes de barro e acabou virando um curta-metragem premiado nos principais festivais do mundo. O que essa experiência trouxe para você?
AS – O maior aprendizado que fica disso tudo é que a vida sempre nos recompensa quando fazemos algo com amor. Quando eu estava pintando essa lona enorme ou quando conversávamos com o diretor do filme sobre o andamento das coisas, não pensávamos nos prêmios. Óbvio que isso também é importante, mas o que me motivava mesmo era a possibilidade de viver uma história interessante, de compartilhar experiências e experimentar algo novo. Naquele momento era minha arte alcançando novos horizontes. Entramos nessa jornada para aproveitar o caminho e não apenas as recompensas da chegada. Acho que quando embarcamos em algo que realmente acreditamos o que nos guia é o amor por aquilo. “Céu de Querubins” começou com a certeza que estávamos fazendo algo que valia a pena. Não tivemos nenhum patrocínio, nenhuma assessoria. Nada! Mas estávamos tão certos daquilo e tão alinhados que nos sentíamos gigantes. Talvez esse tenha sido o segredo de chegarmos tão longe. O que vivemos nesse projeto foi uma grande poesia, e essa poesia continua nos alimentando e nos dando lições diárias.

Obras de Aécio Sarti

Luiz Philippe Carneiro de Mendonça é mineiro e radicado no Rio de Janeiro. Curiosamente, passou a infância morando numa usina de ferro pertencente à sua família, muito ligada às artes e aos artistas.

“Acho que a melhor via para tocar as pessoas é aquela do prazer e, melhor ainda, com humor e alguma poesia.”

Obras: “Leite Derramado” / “Malas de Pedra” / “Casa Imprópria” / “Cavalos”

Durante os anos 60, seu pai, então diretor do Museu de Arte Moderna de Belo Horizonte (Museu da Pampulha), propicia os primeiros contatos com o mundo das artes. Nesse período conheceu o atelier de Guignard em Ouro Preto e conviveu intensamente com Frans Krajcberg, com quem mantém contato e proximidade.
Graduado em Desenho Industrial, no início de sua jornada profissional foi sócio em um estúdio de design, onde se dedicou à diversos trabalhos gráficos.
Paralelo à profissão de designer, e desde sempre, exerceu atividades na área das artes plásticas, seja desenho, pintura, escultura e fotografia.
No começo dos anos 80 se casa e segue para Paris onde trabalha num importante estúdio de design e passa a residir no atelier de Krajcberg, em Montparnasse, gentilmente cedido pelo consagrado artista e amigo.
Ao retornar da Franca, Luiz Philippe se estabelece com a família no Rio de Janeiro, onde por quase vinte anos mora e trabalha num casarão neoclássico do século XIX no charmoso Cosme Velho, o Solar dos Abacaxis, que pertenceu ao avô historiador, cuja atmosfera vem influenciar diretamente o seu trabalho.
Atualmente seu atelier fica em São Cristóvão, no Rio de Janeiro, de onde nos falou um pouco sobre sua trajetória e principais influências!

Obra: “Cadeira”

NL: Com ironia e irreverência, seus trabalhos despertam sorrisos e cativam atenções; do que trata sua obra?
LP: Meu trabalho tem uma ligação muito forte com a memória. Eu costumo dizer que o exercício da memória traz junto uma sensação de prazer! Tanto para o artista quanto para o observador.
Acho que a melhor via para tocar as pessoas é aquela do prazer e, melhor ainda, com humor e alguma poesia. Não faz parte do meu processo tentar dizer alguma coisa simplesmente chocando as pessoas. Acho um caminho fácil e curto. Curto no sentido de pouco alcance.

Obra: “Icarus”

NL: Como surgiram as emblemáticas Malas de Pedra?
LP: A ideia surgiu num insight. De repente, num clique, em 1996. Mas isso não vem de graça. É claro que a nossa mente já reúne e carrega os pré-requisitos e “configurações” necessárias para que uma ideia se forme num clique!
Acho que a Mala de Pedra tem relação com a bagagem, boa ou má, que a gente carrega pela vida. Tem a ver com a existência humana e, obviamente, com a memória. A pedra está ali não apenas como matéria prima da obra, mas sim com sua presença física. É a pedra no papel dela mesma, ainda que se passando por uma mala! Todo o peso do seu elemento tomando um significado desconcertante ao receber uma singela alça de couro.
Mas o que mais me interessa é a imediata assimilação que elas têm por parte do público, das mais diversas esferas sociais e intelectuais. As malas se prestam às mais variadas interpretações individuais. E acho que é através do humor que isso acontece, do prazer e até certo alívio que as pessoas sentem ao ver a escultura.
Aconteceu uma coincidência incrível que ilustra bem isso: durante uma das edições da ArtRio, eu tomei um taxi e estava conversando com o motorista sobre o evento. Ele me contou que foi à ArtRio levando um cliente, e aproveitou para entrar e conhecer. O que mais o marcou em todo aquele universo de arte foi uma obra em que “um cara pegou umas pedras e prendeu umas alças de mala”. Ele contava isso com o maior entusiasmo e nem imaginava que “o tal cara” estava ali no seu taxi!

Obras de Luiz Philippe

NL: Quais são suas principais influências e inspirações?
LP: Apesar de eu ter uma certa implicância com o rótulo de surrealista, não dá para negar algum encanto por alguns aspectos desse movimento. Alguns trabalhos meus tem vínculos claros com o surrealismo. Nesse universo, gosto de muitos trabalhos de Giorgio De Chirico e Man Ray, só para citar dois.
Tenho uma atração que me persegue a vida toda por história e arqueologia. Isso, de alguma forma, acaba refletindo também em meu trabalho. Mas não me sinto preso a qualquer influência determinada. Se eu fosse enumerar os artistas cujo trabalho eu admiro, e que poderiam me influenciar ou inspirar, a lista seria enorme! Acho que funciona mais como um estimulante!

Foto: Sergio Baia

E com a bagagem lotada de inspiração, fico por aqui.
Até a próxima!